Duas senhoras provectas, que buscam a imortalidade, decoram o cenário do Brasil. Seus meneios assustam porque são ao mesmo tempo de carne e osso e fantasmagóricos. Bailam sem parar influenciando o destino, lembrando o passado e apontado para o futuro. Temem ser atingidas e retiradas do cenário e, a qualquer movimento que as ameaçam, mesmo que fracamente, reagem e tentam esmagar a quem a elas se opõem. São duas rainhas: a miséria e a ignorância.
Ninguém sabe dizer suas reais nacionalidades ou naturalidades. A família delas está presente em todo o planeta. Foram detectadas desde as primeiras civilizações baseadas na exploração do homem pelo homem. São velhas matriarcas da história humana, resistiram aos ataques sofridos no século passado e continuam presentes como nunca e por toda parte. Ninguém jamais conseguiu livrar-se completamente delas. Nos países ditos ricos, elas estão lá, obscurecendo (são inimigas da luz) a vida dos senhores e dos escravos.
A diferença para os países ditos pobres é que o grau e número dos mais atingidos é menor, principalmente no que se refere à miséria. Já a ignorância não perdoa ninguém. Pode-se estar rico ou quase e, ao mesmo tempo, pobre de espírito. Dinheiro no bolso e alguma propriedade não garantem sabedoria ou a capacidade de interpretar o entorno social. Não pode haver felicidade nadando-se no rio da ignorância ou no mar da miséria, mesmo que não seja a sua, e, sim, a do vizinho que mora na comunidade próxima de você.
Estas ilustres damas parem a violência, semeiam a discórdia e fazem de tudo para ninguém compreenda que o problema está nelas. São capazes de estarem presentes, sem serem notadas. Disfarçam bem. Têm séculos de experiência. A partir do XIX, foram acusadas sistematicamente de gerarem os maiores males humanos. Antes, sofreram alguns ataques, ainda sem maiores conseqüências. Elas cuidam bem dos seus descendentes, esperando que a recíproca seja verdadeira. Sempre foi difícil combatê-las e elas ganharam todas as batalhas modernas em que foram envolvidas. É verdade que suas vitórias foram difíceis e que estas lutas deixaram cicatrizes impossíveis de serem apagadas.
Quem hoje luta contra estas ilustres damas, a partir do que podem e de onde estão, baseia-se ou deve conhecer estas cicatrizes. É importante não se esquecer que a questão é mais antiga do que parece. Os seus novos agentes tentam convencer a todos, como no passado, que as suas existências são fenômenos naturais e que elas são invencíveis. Insistem na tese conservadora da imutabilidade do mundo e da inteligência.
A ignorância tem múltiplas faces. Talvez, a mais fácil de ser percebida é a do preconceito. Ele está presente em graus e modalidades variadas por toda parte. A existência de alfabetizados e numerados cheios de preconceitos prova que o letramento não é suficiente. Saber ler, escrever e contar é significativo, entretanto, não evita o culto e a reverência dessa ilustre senhora. Ela afeta aos doutores e àqueles que jamais tiveram a oportunidade de ir à escola.
São ignorantes os que reverenciam sua matriarca e rainha. Os que não podem ou não querem `ver´ o que os envolvem pelas mais diversas razões. A mais importante destas consiste na posição que ocupam no tecido social. Senhores podem ser tão ou mais ignorantes do que seus escravos, tal como na famosa dialética entre senhor e escravo de Hegel. Os seres humanos não são determinados por alguma força mágica, que os obrigam a optar pela ignorância. Ela é tão construída como a sabedoria possível.
A face mais perversa desta velha matriarca, com a qual nos deparamos a toda hora, por exemplo, vendo tv, lendo o jornal ou conversando com os demais, é outra bem diferente. Não é muito facilmente perceptível ou detectável. É preciso alguma capacidade ou treinamento. Esta está no método que usamos para pensar. O modo que se constróem opiniões depende de concepções que foram ensinadas previamente. Trata-se dos enquadramentos que se faz da realidade. Estes podem ser livres de interesses dominantes ou manipulados pelos sensos comuns e pelas tradições. Todavia, estarão, para o bem e para o mal, sempre presos ao que se é materialmente e espiritualmente, isto é, aos desejos, a sanidade e a loucura de cada um.
A outra dama, a miséria, está para quem quiser ver. Nas ruas, nas estatísticas, nas diferentes habitações e nos comportamentos decorrentes. As modernas cidades tentam, sem muito sucesso, escondê-la. No Rio de Janeiro, por exemplo, existem cerca de 800 comunidades faveladas. No entanto, a imagem turística da cidade ainda é, preponderantemente, a Zona Sul, as belas praias, o Corcovado e o Pão de Açúcar. Diferentemente de outras cidades brasileiras, no Rio não existem apenas periferias. No miolo mais rico, a miséria está lá presente para quem quer ver. Parafraseando um velho funk, ela está querendo `ser feliz´, vivendo `tranqüilamente na favela em que´ nasceu.
As favelas, face mais visível da miséria urbana de hoje, alimentam o mundo do trabalho. São ricas em milhões de trabalhadores que fazem a economia e a sociedade funcionar. Igualmente, são ricas em cultura, alimentando junto com as `periferias´ a moderna cultura de massas. Estão integradas ao consumo, retroalimentando o sistema que gira em torno de comprar ou, ao menos, desejar adquirir tudo o que a publicidade tenta empurrar.
Elas são o cenário de uma violência imensa, patrocinada pelo Estado e por uma minoria ínfima de moradores relacionada à criminalidade urbana. A população favelada, bem como os pobres das periferias, pagam um alto preço por não ter outro jeito de sobreviver. São culpabilizados por serem pobres, como se a pobreza fosse uma escolha. No fundo, são vistos como diferentes, porque lembram, de modo nítido, as origens africanas, indígenas e mestiças brasileiras. Isto tudo, em um país que se imagina `branco´, de estipe européia.
Nos últimos anos, no atual governo federal, houve melhorias. A miséria diminuiu para uma parcela da população, tal como as estatísticas provam e se pode ver em alguns lugares. Não há dúvida sobre isto. Todavia, o que foi feito ainda é muito pouco, ou melhor, o problema é grande demais. Há várias formas de considerar a existência de uma boa consciência. Prefere-se aquela que se baseia na idéia de que a miséria não é natural e que existem meios hoje de se conseguir sua eliminação. Ofender esta ilustre dama que teima em nos governar é um bom propósito.
Acha-se estranho, quando se fala de política sem lembrar que seu objetivo maior deveria ser o de derrotar a miséria e a ignorância. Quem fala de política, sem lembrar da existência destas ilustres damas que pleiteiam a imortalidade, é suspeito. Na verdade, defende a permanência do reinado de ambas. Isto porque, elas, de fato, são intermediárias dos donos do poder real. Não estão aí por acaso. Suas missões são a de manter tudo em seu lugar, facilitando a exploração e impedindo a consciência crítica. Quiçá, neste século, estas damas funestas sejam derrotadas, trazendo a felicidade geral e a distribuição das riquezas da Terra aos seus filhos.
Luís Carlos Lopes é professor.
Ninguém sabe dizer suas reais nacionalidades ou naturalidades. A família delas está presente em todo o planeta. Foram detectadas desde as primeiras civilizações baseadas na exploração do homem pelo homem. São velhas matriarcas da história humana, resistiram aos ataques sofridos no século passado e continuam presentes como nunca e por toda parte. Ninguém jamais conseguiu livrar-se completamente delas. Nos países ditos ricos, elas estão lá, obscurecendo (são inimigas da luz) a vida dos senhores e dos escravos.
A diferença para os países ditos pobres é que o grau e número dos mais atingidos é menor, principalmente no que se refere à miséria. Já a ignorância não perdoa ninguém. Pode-se estar rico ou quase e, ao mesmo tempo, pobre de espírito. Dinheiro no bolso e alguma propriedade não garantem sabedoria ou a capacidade de interpretar o entorno social. Não pode haver felicidade nadando-se no rio da ignorância ou no mar da miséria, mesmo que não seja a sua, e, sim, a do vizinho que mora na comunidade próxima de você.
Estas ilustres damas parem a violência, semeiam a discórdia e fazem de tudo para ninguém compreenda que o problema está nelas. São capazes de estarem presentes, sem serem notadas. Disfarçam bem. Têm séculos de experiência. A partir do XIX, foram acusadas sistematicamente de gerarem os maiores males humanos. Antes, sofreram alguns ataques, ainda sem maiores conseqüências. Elas cuidam bem dos seus descendentes, esperando que a recíproca seja verdadeira. Sempre foi difícil combatê-las e elas ganharam todas as batalhas modernas em que foram envolvidas. É verdade que suas vitórias foram difíceis e que estas lutas deixaram cicatrizes impossíveis de serem apagadas.
Quem hoje luta contra estas ilustres damas, a partir do que podem e de onde estão, baseia-se ou deve conhecer estas cicatrizes. É importante não se esquecer que a questão é mais antiga do que parece. Os seus novos agentes tentam convencer a todos, como no passado, que as suas existências são fenômenos naturais e que elas são invencíveis. Insistem na tese conservadora da imutabilidade do mundo e da inteligência.
A ignorância tem múltiplas faces. Talvez, a mais fácil de ser percebida é a do preconceito. Ele está presente em graus e modalidades variadas por toda parte. A existência de alfabetizados e numerados cheios de preconceitos prova que o letramento não é suficiente. Saber ler, escrever e contar é significativo, entretanto, não evita o culto e a reverência dessa ilustre senhora. Ela afeta aos doutores e àqueles que jamais tiveram a oportunidade de ir à escola.
São ignorantes os que reverenciam sua matriarca e rainha. Os que não podem ou não querem `ver´ o que os envolvem pelas mais diversas razões. A mais importante destas consiste na posição que ocupam no tecido social. Senhores podem ser tão ou mais ignorantes do que seus escravos, tal como na famosa dialética entre senhor e escravo de Hegel. Os seres humanos não são determinados por alguma força mágica, que os obrigam a optar pela ignorância. Ela é tão construída como a sabedoria possível.
A face mais perversa desta velha matriarca, com a qual nos deparamos a toda hora, por exemplo, vendo tv, lendo o jornal ou conversando com os demais, é outra bem diferente. Não é muito facilmente perceptível ou detectável. É preciso alguma capacidade ou treinamento. Esta está no método que usamos para pensar. O modo que se constróem opiniões depende de concepções que foram ensinadas previamente. Trata-se dos enquadramentos que se faz da realidade. Estes podem ser livres de interesses dominantes ou manipulados pelos sensos comuns e pelas tradições. Todavia, estarão, para o bem e para o mal, sempre presos ao que se é materialmente e espiritualmente, isto é, aos desejos, a sanidade e a loucura de cada um.
A outra dama, a miséria, está para quem quiser ver. Nas ruas, nas estatísticas, nas diferentes habitações e nos comportamentos decorrentes. As modernas cidades tentam, sem muito sucesso, escondê-la. No Rio de Janeiro, por exemplo, existem cerca de 800 comunidades faveladas. No entanto, a imagem turística da cidade ainda é, preponderantemente, a Zona Sul, as belas praias, o Corcovado e o Pão de Açúcar. Diferentemente de outras cidades brasileiras, no Rio não existem apenas periferias. No miolo mais rico, a miséria está lá presente para quem quer ver. Parafraseando um velho funk, ela está querendo `ser feliz´, vivendo `tranqüilamente na favela em que´ nasceu.
As favelas, face mais visível da miséria urbana de hoje, alimentam o mundo do trabalho. São ricas em milhões de trabalhadores que fazem a economia e a sociedade funcionar. Igualmente, são ricas em cultura, alimentando junto com as `periferias´ a moderna cultura de massas. Estão integradas ao consumo, retroalimentando o sistema que gira em torno de comprar ou, ao menos, desejar adquirir tudo o que a publicidade tenta empurrar.
Elas são o cenário de uma violência imensa, patrocinada pelo Estado e por uma minoria ínfima de moradores relacionada à criminalidade urbana. A população favelada, bem como os pobres das periferias, pagam um alto preço por não ter outro jeito de sobreviver. São culpabilizados por serem pobres, como se a pobreza fosse uma escolha. No fundo, são vistos como diferentes, porque lembram, de modo nítido, as origens africanas, indígenas e mestiças brasileiras. Isto tudo, em um país que se imagina `branco´, de estipe européia.
Nos últimos anos, no atual governo federal, houve melhorias. A miséria diminuiu para uma parcela da população, tal como as estatísticas provam e se pode ver em alguns lugares. Não há dúvida sobre isto. Todavia, o que foi feito ainda é muito pouco, ou melhor, o problema é grande demais. Há várias formas de considerar a existência de uma boa consciência. Prefere-se aquela que se baseia na idéia de que a miséria não é natural e que existem meios hoje de se conseguir sua eliminação. Ofender esta ilustre dama que teima em nos governar é um bom propósito.
Acha-se estranho, quando se fala de política sem lembrar que seu objetivo maior deveria ser o de derrotar a miséria e a ignorância. Quem fala de política, sem lembrar da existência destas ilustres damas que pleiteiam a imortalidade, é suspeito. Na verdade, defende a permanência do reinado de ambas. Isto porque, elas, de fato, são intermediárias dos donos do poder real. Não estão aí por acaso. Suas missões são a de manter tudo em seu lugar, facilitando a exploração e impedindo a consciência crítica. Quiçá, neste século, estas damas funestas sejam derrotadas, trazendo a felicidade geral e a distribuição das riquezas da Terra aos seus filhos.
Luís Carlos Lopes é professor.
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